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O Palestra Italia em disputa: fascismo, antifascismo e futebol em perspectiva histórica

  • Foto do escritor: Ocupa Palestra
    Ocupa Palestra
  • 26 de ago. de 2021
  • 6 min de leitura

por Micael Zaramella


No ano de 2018, instigado pelas disputas estabelecidas entre torcedores do Palmeiras e de outros clubes rivais acerca de imaginários identitários sobre a agremiação alviverde, iniciei uma pesquisa documental em torno das presenças, relações e conexões entre a Società Sportiva Palestra Italia (atual Sociedade Esportiva Palmeiras) e os grupos organizados de fascistas e antifascistas italianos na cidade de São Paulo durante as décadas de 20, 30 e 40.


O recorte estabelecido nesta investigação histórica (a questão do fascismo, do antifascismo e seus enredamentos com o futebol) foi diretamente estimulado pelo teor dos debates em vigor em torno da possível vinculação (identitária e histórica) da agremiação Palmeiras e o fascismo. Intensificada às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro à presidência, a discussão mobilizava – no contexto – torcedores de vários clubes, setores diversos da militância de esquerda (integrantes de partidos, movimentos sociais, coletivos e torcidas antifascistas), jornalistas, e sócios e conselheiros da agremiação palestrina. Alguns episódios pontuais capitanearam a emergência do debate, como a celebração de um gol contra o Bahia por Felipe Melo (na qual o atleta fez uma saudação ao então candidato Bolsonaro), a publicação de uma reportagem no jornal El Clarín publicada em 5 de outubro de 2018, que estabelecia relações difusas entre o Palmeiras e o fascismo (matéria que recebeu uma carta de resposta produzida pela própria Sociedade Esportiva Palmeiras), e a participação do próprio Jair Bolsonaro, então já eleito presidente, na comemoração do título palmeirense do campeonato brasileiro de 2018.


Neste contexto, em contato próximo com diversos coletivos políticos que atuam junto à torcida palmeirense, notei a existência de uma intensa disputa discursiva que mobilizava (e segue mobilizando) diretamente o passado histórico da agremiação na construção de identidades político-torcedoras atreladas a demandas do presente. Inicialmente interessado em esmiuçar a presença de fascistas e antifascistas dentro da agremiação palestrina no contexto do fascismo histórico, me deparei com a possibilidade de interlocuções entre as disputas estabelecidas no passado e aquelas que se desenham no presente: neste sentido, o objetivo do trabalho “O Palestra Italia em disputa: fascismo, antifascismo e futebol em São Paulo (1923-1945)”, publicado como dissertação de mestrado defendida na FFLCH-USP, visou mapear historicamente a atuação de tais grupos – fascistas e antifascistas – sem reduzir-se à defesa de uma identidade rígida e essencial da agremiação que se vinculasse a alguma destas orientações políticas. Meu objetivo consistiu fundamentalmente em observar a incidência de sua atuação ao longo das décadas de 20, 30 e 40, com especial atenção às irregularidades, às contradições e a emergência de linhas de fuga para imaginar as identidades palestrinas a partir do exercício dialógico e tensionado de vozes tão distintas no clube.



Para tanto, foi necessário estabelecer uma retomada contextual do ambiente de lutas sociais na cidade de São Paulo, durante as primeiras décadas do século XX, enfatizando as interações e enredamentos entre a atuação política de anarquistas, socialistas, sindicalistas e movimentos do operariado com a extensa coletividade italiana instalada na cidade. Neste contexto, para além das práticas de enfrentamento de classe (como greves e manifestações de rua), destacava-se também a formação de culturas operárias autônomas, organizadas em torno da realização de eventos como peças de teatro, bailes, piqueniques e, em um segundo momento, até mesmo torneios de futebol. Após a Greve Geral de 1917, por sua vez, notava-se uma intensa disputa em torno de tais práticas, estabelecida entre as entidades e movimentos operários que organicamente as organizavam, e os ímpetos disciplinares das elites paulistas que buscavam estabelecer formas de expandir seu controle também sobre o tempo livre operário.


O ambiente da coletividade italiana instalada na cidade, por sua vez, vivia no mesmo contexto um processo multifacetado e tensionado de construção da ideia de italianidade, isto é, de um imaginário identitário que unificasse os imigrantes. Os dissensos estabelecidos neste ambiente enredavam-se aos aspectos de classe, e a partir da década de 20, passaram a ser protagonizados por fascistas e antifascistas organizados, que procuraram atrelar a noção de italianidade a seus próprios interesses e objetivos políticos. Esta disputa, conforme já demonstrado pela historiografia, se desdobrou com especial fervor nas instituições e entidades italianas da cidade – situação à qual o clube Palestra Italia não escapou.


Simultaneamente, também procurei salientar a existência de disputas no âmbito do futebol, no mesmo contexto das primeiras décadas do século XX, indicando a existência de ambientes claramente separados: o chamado futebol oficial, protagonizado originalmente por agremiações de elite; e outros futebóis praticados nas várzeas, fábricas e bairros populares, por grupos sociais originalmente excluídos do circuito oficial. Para além de mera separação, as interações, diálogos e negociações entre estas esferas – sem dúvidas atravessadas por tensões – incidiu diretamente na produção de novas práticas e processos estabelecidos no ambiente futebolístico, como a introdução de clubes de conotação “popular” no circuito oficial (como o próprio clube Palestra Italia, entre outros), a ascensão das torcidas enquanto protagonistas na composição do espetáculo futebolístico, os novos estádios e suas arquiteturas, o embate entre amadorismo e profissionalismo e o próprio manuseio do futebol pelas estratégias e práticas disciplinares das elites industriais sobre o tempo livre das classes trabalhadoras.


Neste contexto, procurei me aprofundar na história social da Società Sportiva Palestra Italia, percebendo-a diretamente enredada, em suas primeiras décadas, aos processos em curso no contexto urbano, social e futebolístico apresentado. É digno de nota o processo de elaboração das identidades palestrinas em relação aos ambientes nos quais se inseria (a cidade, o campo futebolístico e a própria coletividade italiana): ao longo das primeiras décadas de história do clube, observamos a presença e participação de elementos não italianos na vida clubística, a introdução de atletas negros em diversas modalidades, os enredamentos episódicos de sua história com os enfrentamentos de classe estabelecidos na cidade, e finalmente, adentrando o objeto específico da pesquisa, as disputas entre fascistas e antifascistas no clube entre as décadas de 20 e 40.


No tocante a tais disputas, o manuseio de ampla documentação histórica (com especial ênfase na imprensa social ítalo-paulistana) me permitiu vislumbrar a disputa discursiva estabelecida entre fascistas e antifascistas nas páginas de seus jornais: como exemplos, o relato de um confronto direto entre integrantes dos dois grupos políticos na sede do clube em 1925, noticiado pelo jornal antifascista La Difesa e outros periódicos; as críticas, muitas vezes irônicas e sarcásticas, tecidas pelo jornal antifascista Il Risorgimento acerca da proximidade estabelecida entre o cônsul italiano Serafino Mazzolini e o dirigente palestrino Luigi Eduardo Matarazzo; e a disputa classista estabelecida pelo jornal anarquista Lo Spaghetto em torno do Palestra Italia.


A investigação centrada em figuras atuantes na política palestrina também revelou a atuação de antifascistas notórios como Dante Isoldi, ativo conselheiro da agremiação durante as décadas de 20 e 30, e o industrial Egídio Gamba, que integrou o conselho durante a década de 20 enquanto estabelecia um marcante contraponto à difusa simpatia do setor industrial ítalo paulistano pelo fascismo, abrigando antifascistas em suas empresas. Na década de 30, por sua vez, a gestão do clube por Dante Delmanto constituiu fundamental oposição ao grupo fascista existente no interior da agremiação, estabelecendo uma maior abertura do clube a grupos e imaginários identitários para além do italiano, e envolvendo-se diretamente em tensões conflituosas com jornais simpáticos ao fascismo, como Il Pasquino Coloniale, dirigido por Gaetano Cristaldi.


O manuseio de documentação política do contexto, como fichas e prontuários do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS-SP) atualmente abrigados no acervo do Arquivo do Estado de São Paulo, também revelou a presença de fascistas em outras agremiações esportivas da cidade, como os dirigentes Raphael Perrone e Giuseppe Tipaldi no Sport Club Corinthians Paulista, sinalizando enfaticamente a complexidade do cenário sociopolítico do contexto e a demanda por reflexões historiográficas que superem os essencialismos, atrelando imaginários identitários estáticos a um ou outro clube.


Conclusivamente, a pesquisa documental e a construção de interpretações sobre as fontes primárias me conduziram a reafirmar profundo interesse pelas possibilidades que o Palestra Italia produziu em seu interior, a partir de sua notável composição plural. Constituindo-se como ambiente dialógico – evidentemente atravessado por tensões, disputas e dissensos – o clube reelaborou suas possibilidades identitárias em movimento, evadindo qualquer captura essencialista em torno do elemento italiano e abrindo-se a outras possibilidades, confirmadas em 1942 na mudança de nome para Sociedade Esportiva Palmeiras. Que o exercício dialógico destas identidades em devir, visualizadas nas décadas iniciais do clube, possam nos inspirar a seguir imaginando, insistindo e construindo, hoje, um Palmeiras de todas e todos.

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